domingo, 26 de abril de 2009




E lá estava ela pronta. Mais uma mudança na sua vida. Calça jeans, suéter preso à cintura, cabelos presos em um rabo de cavalo, mochila nas costas e uma tristeza contida no olhar. Ia deixar os seus e se aventurar em uma outra cidade, sem parentes ou amigos, na busca de aprimoramento profissional. E daquela moça de conduta forte, direta e objetiva, mandona e engraçada, vi em um relance uma menina que não quer se separar, deixar o ninho seguro, como se fosse uma cena de não querer ser deixada na porta do colégio no primeiro dia de aula.

Mas a hora chegava. Era a hora de dizer adeus e boa viagem. Não era uma viagem de férias ou de congressos científicos, em que tinha passagem de ida e passagem de volta com data e horário já combinados. Não. Era uma viagem da vida. Um espaço nessa grande jornada. Um futuro de possibilidades.

Abraços, desejos de sucesso e sorte nessa nova empreitada. Palavras de otimismos e amor. Sem mais delongas...depois de tantas despedidas formais com alegria pra não sentir a partida, na hora mesmo, é inevitável não se emocionar. Não pensar em saudade ou em medo, do desconhecido, do que está por vir.

Mas a vida é assim. Escolhas. E como em todas as escolhas existem os ganhos e as perdas. Existem os sacrifícios.
Com lágrimas no olhar, combinando com o céu derramando muitas gotas naquela tarde, ela enfim, se despediu e dobrou o corredor.
"Vai ser bom pra ela. Ela vai crescer.", falou desolada a amiga de colégio, já com aperto no coração ao não ver mais a amiga branquinha de sardas no rosto.
E silenciosamente eu concordei com suas palavras. Que seja assim então. É o que todos desejamos.

domingo, 19 de abril de 2009


Foto: Mariana Melo


Eu sei mas não devia


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.

A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduiches porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E não aceitando as negociações de paz, aceita a ler todo dia de guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À luta. À lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai arrastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza para preservar a pele.

Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da forca e da baioneta, para poupar peito.

A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta e que de tanto acostumar, se perde de si mesma.


(Marina Colasanti)


quarta-feira, 8 de abril de 2009

Fria não, quente sim




Eis que naquela tarde o que emergiu na sala do aqui e agora sem dúvida foi muito emocionante, principalmente para quem se sentou naquela cadeira nada vazia, ao contrário, presencial e muito quente.


Do lado de fora

Uma pessoa de cada vez sentava naquela cadeira no meio do círculo, e olhando e ouvindo com atenção cada rosto da sala para todas do círculo aparentava serem acompanhadas pelo nervosismo. O que dizer para elas? Mal as conheço...Falar das boas impressões...e ouvir de cada um...como devem receber isso?

A cada palavra amiga, sorriso transbordante. Ouvir de outras sobre quem estava na berlinda é possibilidade para conhecer um pouco mais. Há quem diga "gente, essa cadeira dá medo mas é muito boa".

É bom falar aos outros o que de bom vemos neles, mesmo que sejam só impressões. Estou acostumada a falar para quem tenho apreço. Mas como deve ser ouvir? Ouvir naquele contexto de um grupo total?



Do lado de dentro

Hoje, ouvindo o bordão "desde que te conheci..." me fez sentir um clima de despedida. Na hora não me emocionei a ponto de chorar, recebi muito bem aquelas palavras, aquela sinceridade, aqueles sentimentos, me surpreendi com algumas características ressaltadas e concordei com a maioria.

Foi interessante estar lá, disposta a virar a atenção para cada uma daquelas pessoas e ouvir. Ouvir daquelas que convivem comigo, e daquelas que ainda não tem tanta aproximação. A simplicidade ressaltada me foi um grande presente, ser revelada pelos outros é uma sensação muito boa. Pode às vezes conflitar com meu espelho, mas é só lucro. Margem para re-avaliações.

E agora, me lembrando, lamentei não ter gravado, pois algumas coisas já esqueci e afinal, foi um momento único que agora só faz parte do acervo de memórias...Foi muito bom.Obrigada, obrigada.

Há quem diga "não quero ir, vou chorar...", ora amiga, que há de mal em chorar por ouvir ou dizer coisas boas a quem gostamos?
Pode experienciar, eu recomendo.


sábado, 4 de abril de 2009



"No exercício da profissão aprendi que a reação individual diante da possibilidade concreta da morte é complexa, contraditória e imprevisível; impossível compartilhá-la em sua plenitude."

(Drauzio Varella em Por um fio, p.8)


Há aqueles que lutam contra ela combatendo sua manifestação primeira, física e mentalmente.
Há aqueles que não impõem resistência à ela, simplesmente aceitam-na e não se empregam em adiá-la (quando é possível).
Há aqueles que já a encontram desde cedo, muitas vezes jovens demais para compreender ou sentir.
Há aqueles que a procuram intencionalmente, ou insanamente.
Há aqueles que não se perturbam, encaram-na como passagem.

Como ela chega até você?

Pode vir como um medo.
Pode vir como um mal, um castigo.
Pode vir como uma provação.
Pode vir como um privilégio.
Pode vir como uma libertação.
Pode vir como alívio.
Pode vir como coragem.
Pode vir como dor.

Dor para aqueles que a tem como uma quase certeza.
Para aqueles que são por ela chamados.
E, para aqueles que vêem e sentem a partida dos levados por ela.
Mesmo quando é previsível, aguardado.
Mesmo quando é tão de repente.
Não importa quanto preparados estamos ou não para sua chegada, machuca, marca, dói.

E quando ela vem mais rápido por decorrência da ir/responsabilidade de outros, e principalmente, daqueles treinados a retardá-la, daqueles que levam o mito de salvarem as pessoas dela e das suas manifestações, o descaso e o desrespeito destes para com as pessoas torna o contato com ela muito mais cruel e doloroso.

Às vezes, ela vem limpa.
Às vezes, ela vem silenciosa.
Às vezes ela ronda, espreita, assusta e se afasta sem concretizar seu feito.
Às vezes, ela vem suja.
Às vezes, ela vem barulhenta.
Às vezes, ela não só ronda e assusta, é impiedosa e cruel.

Não costumamos pensar nela como uma possibilidade presente, mas como um encontro lá longe, distante.
Passar por ela, acompanhando a experiência dos outros, ou por sua própria, afeta em algum nível.
Desconhece-se a hora, o lugar, o dia.
Se chove ou faz sol. Se é carnaval, férias ou natal.
Se é criança, jovem ou idoso.

É da natureza daqueles que respiram. E apegar-se ao seu oposto, ou seja, à vida, "é uma força selecionada impiedosamente pela natureza nos milhares de gerações que nos precederam" (Drauzio Varella,em Por um fio p.11).

Quando as pessoas que tem uma experiência muito próxima dela, é muito comum, quando ainda são plenos de suas faculdades, ressignificarem seu momento. É uma oportunidade de autoconhecimento e conhecimento.
Com sua presença ameaçadora ou concreta, muitos aproximam-se de suas crenças e de seus significativos. Outros, perdem sua crenças, outros que não tinham adquirem-nas e há aqueles que permanecem descrentes...

Ter contato com ela, gera outras percepções da vida, passam a valorizar coisas que no dia-a-dia nunca lhes fora uma figura, apenas um fundo.

Nos fim das contas, ela é inevitável. É natural e repercuti na vida daqueles que por ela são levados e daqueles que acompanham sua partida.
E mesmo indo embora, deixa sua sombra até a readaptação dos enlutados. Depois, é só lembrança.

...

Hoje, completam sete dias em que se foi um ente querido. Como vêem, ainda estou nesse processo. E é curioso, pois mesmo antes dele ir, a morte, sobre a qual escrevo, se apresentou a mim de diversas maneiras e continuou ao longo de todos esses dias. Muitas coincidências. É impossível, não pensar sobre ela, pois realmente, ficou me rondando às vezes mais sutilmente, às vezes mais diretamente e fortemente. Sem dúvida, uma semana mórbida.

Assim, com a morte chega em mim?

Depois de tantas coincidências pra uma semana só, pelo menos nesse aqui-agora, vocês estão sendo cúmplices do resultado do meu ajustamento criativo.


sexta-feira, 3 de abril de 2009

Foto: Mariana Melo


Ok. "Paciência é uma virtude". Ouvi isso em algum lugar...

Mas por que estou a escrever se nem sei que fios vai tecer?

Por que insisto em olhar se a visão não mudará?

Por que?

Por que insisto?

Resiliência? Esperança? Masoquismo? Falta de clareza? Estuporamento? Cruciatus? Ojesed? Legilimência?

Sabe lá...etecétera etecétera...

Hum. Talvez porque paciência é uma virtude...

Mas o que é paciência?

E o que é virtude?

E o que isso tudo tem a ver com o meu não entendimento autoafirmativo dramático enobrecido?

Por que será que dessas palavras nem sentido haverá
de prosseguir nesta agonia de não saber
que claro não está
e nem escuro parece ficar

apenas cinza.